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  • Alexandra Mettrau

TRANS-PIRAÇÃO!


Vou caminhando distraída em pensamentos, quando repentinamente uma gota de chuva cai do céu. Um passarinho faz xixi em mim? Ou será uma árvore transpirando?! Talvez chorando, ou deixando escapar uma gota de baba! Pode ser lágrima de urubu também... Talvez a “trans-pirada” seja eu... Na verdade deve ser uma gotinha de presença me dizendo para andar prestando atenção no caminho!


Presença... A chuva se faz presente na gota, me presenteando a mim mesma. O que marca uma presença? Um olhar, uma fala, um objeto? O primeiro homem que pisou na lua deixou sua pegada na superfície lunar e fincou lá a bandeira de seu país. Provas de presença ou de ausência? O que está em nosso satélite, se o astronauta e a nação não estão? Sigo “trans-pirando” ao atentar para uma camiseta velha pendurada em um galho com espinhos como se fosse uma bandeira, me perguntando sobre o ausente que se expressa ali…


Na rua, só eu. No céu, só deus. Enquanto a camiseta flameja no galho, percebo a presença do invisível. No azul, o pássaro canta a saudade da liberdade. Quase um fado, carregado de melancolia e beleza, em que bailam as nuvens e as pipas de agosto. Não há sinal de chuva. Sigo as gotinhas de água pelo chão, que salpicam em mim de vez em quando. Mais vale um pássaro na mão do que dois voando. Essa frase nunca fez muito sentido pra mim.


Segui sorrindo por realmente perceber que aquelas lágrimas de céu refrescaram não só o abafado do dia, como da minha alma também! Essa saudade de liberdade vem subindo pelo meu corpo como um fogo queimando, pulsando como algo que não pode mais ficar contido. Repentinamente faço algo que sempre quis fazer e nunca tinha feito: danço pelas ruas! Entre saltos e piruetas, balanços e rodopios, o mundo some me fazendo mergulhar na alegria e espontaneidade do momento.


Tudo o que eu queria era poder tomar um banho agora! Frio, refrescante, vitalizante! Lavar o corpo como lavei a alma! Sentir a água escorrendo pelos meus cabelos, rosto, olhos. Deslizando pela minha pele. Levando embora a falta de sentido, a prisão, a saudade e a ausência “trans-piradas” na dança libertadora. Exalando vida dançante, volto para casa.


No caminho adiante, observo as casas que passam pelo meu bairro. É dezembro e o mês vem vestido de nostalgia. Apesar dos prédios que aparecem cada vez mais por essas ruas, ainda restam algumas casas bem antigas. Dessas em que há sempre um casal de velhinhos sentados na calçada, um duende no jardim, ou uma roseira plantada. Essas, que ainda fazem bacalhaus em almoços de páscoa e escutam a missa na TV, domingo de manhã. Uma delas reluz pra mim de maneira muito colorida. É quase noite, e já ligaram o pisca-pisca. Pela janela, uma senhora de cabelo de nuvem cinzenta me observa passar com seu olhar místico. A cada passo que dou à frente, o seu olhar me acompanha com a ponta do seu nariz. O caldeirão da bruxa se enfeita com as luzes do natal.


Chego em casa, entro pela porta e vou em direção à sala. No centro tem uma árvore bem grande, minha companheira, a qual nunca tive coragem de cortar! Quando construí a casa adaptei o telhado de modo que ela se mantivesse viva. Reparei que tinham nascido musgos fazendo desenhos em sua superfície para serem decifrados por quem passasse. Como fui a primeira a percebê-los, olhei bem para aquelas formas, abri a mente e observei atenta... Até que um desenho se formou: uma bruxa com um passarinho no ombro segurando uma rosa no bico. Que curioso!


Mais curiosa ainda foi a sensação de estar sendo vigiada. Bruxa na árvore e no caldeirão enfeitado de luzes. Um calafrio percorre minha espinha e me viro repentinamente tentando flagrar o observador sorrateiro. Nada! A bruxa ainda está na árvore. Mas, um momento… Ahá! No canto, por trás do grande tronco lar da feiticeira, vislumbro a folha gigante da planta rosa e verde, salpicada de branco. Guarda-sol de duende. Será que ele me seguiu desde o jardim dos velhinhos? Um momento paralisada. Penso em Alice, Hérmia e suas aventuras pelos países e mundos maravilhosos e encantados. Decido dar uma maçã ao inusitado visitante debaixo de seu guarda-sol. Quem sabe ele veio me convidar para um passeio no reino de Titânia ou da Rainha de Copas!


A proporção da fruta me faz refletir. Ainda para amadurecer, essa fruta pros duendes, deve ser como uma melancia para nós, humanos. Eu os imagino como seres pequeninos, mas não muito diferentes de nós. Mais conectados com a natureza, ao certo que são. Talvez eles tenham cheiro de musgo e terra molhada. Tomem banho com as gotas de chuva. Façam uma oração ao Sol pela manhã, e brinquem de contar as estrelas com a luz da Lua. Da última janela do meu quarto, me pego pensando essas coisas. Daqui tem uma vista pro quintal do vizinho, que transporta a minha cabeça, como agora, para outro tempo, carregado de criaturas fantásticas e de vagarezas. Um vizinho que ainda tem um quintal de terra batida. A esposa dele, a Dona Rosa, cultiva algumas ervas que, de vez em quando, bato lá pra pegar mudinhas e fazer chá. Eles têm um neto. Nas férias de julho e dezembro, eu o vejo crescer, aqui da minha janela. Há um pneu jogado no quintal de terra. Roda-gigante de criança.


Adormeço e amanheço. Ouço um barulho vindo da rua, uma quebradeira, vou até o portão ver o que é. Vejo do outro lado da rua o Jai, marido de Dona Rosa, parece um duendinho! Ele anda com o botão da camisa aberta no umbigo e, nos pés, usa botinas caipiras. Olhos pequenos, com bolsinhas d’água debaixo (que parece que uma agulha seria capaz de furar a qualquer momento). Tira os entulhos do terreno. Diz que a terra é do seu filho e que se não gosta de entulho na sua propriedade, também não quer ver entulho na dos outros. O cumprimento, me alegro com suas palavras e seu cuidado com a terra, ofereço ajuda e fico lá um tempo tirando entulhos, conversando... me sinto em paz!


Que estranho, de repente sinto um vazio na barriga! Me lembro que é hora do almoço. Nem vi o tempo passar. Tampouco a terra que foi vazando para a rua. Me despeço de seu Jai e quando me viro para voltar para casa, percebo que um rio de lama escorre pelas beiradas da rua de paralelepípedo deixando terra nos rejuntes. Parece uma enxurrada na época das chuvas: a água levando tudo que encontra pela frente e deixando um rastro de terra, vegetação e escombros nos recônditos e quinas. Fico aliviada em pensar que é só o suficiente para preencher os rejuntes. Nenhum pequeno ser terá a casa inundada! A barriga volta a reclamar minha atenção e lembro com prazer do ensopado que me espera.


A panela em cima do fogão faz barulhinhos quando ligo o fogo pra esquentar a comida. Acho que já é um pouco tarde, o dia passou sem demoras, e eu me distraindo com o acaso. Estranho a chama do fogo, que me parece bem baixa, apesar de ter colocado em temperatura alta. Abro a janela da cozinha, para que entre a noite e o vento que sopra fazendo assobios, levando um pouco do calor de verão. A rajada de brisa me surpreende, me convidando pra ir junto, mas passa. Fecho os olhos e sinto o frescor e a minha fome virando quase uma úlcera. A chama do fogo quase se apaga. Então, esfriamos rapidamente, eu e o ensopado que me espera. Ainda bem que tenho pão para molhar no caldinho.


Sento no sofá de frente para a janela, com o prato na mão me delicio a cada colherada. Sinto o alimento entrando, me aquecendo e nutrindo. Onde tenho colocado minha energia? Realizei tantas coisas hoje e agora estou exaurida... Pois é, esse direcionar da minha vitalidade é fundamental para que eu possa construir e sustentar o que desejo na vida... Uau!! Olho para além da janela e vejo um flamboyant que faz pegar fogo na água do céu que evapora! Fogo no céu em um pôr do sol alaranjado, fogo que aqueceu meu alimento, fogo arvorecido, fogo interior que cuido para incendiar o mundo com o que há de único em mim!


Vitalmente cansada e feliz, começo a me preparar para a noite. Não costumo dormir cedo, mas o corpo, cansado do dia produtivo, pede arrego. Antes de deitar, entro numa ducha morna e relaxante. Como de hábito, a água me lava a alma, trazendo as últimas reflexões do dia. A lembrança do flamboyant ao pôr do sol traz à memória os inusitados encontros destes dias: a bruxa com seu caldeirão, o duende sob seu guarda-sol, os pássaros, a chuva, seu Jai e a enxurrada nos rejuntes, a camisa-bandeira e a liberdade bailante “trans-pirada”. Visto a camisola de estampa com plantas em formato de ouriços com pétalas rosas nas pontas e rio sozinha deste último encontro espetado que encerra minha viagem com chave de ouro!

CONTO A 6 MÃOS POR:

Alexandra Mettrau - @alexandramettrau

Laura Barbeiro - @laurabarbeiroo

Laura Job - @laurajobvisnadi


IMAGEM: ArtTower em Pixabay

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